18 July 2014

A Microsoft/Nokia vai demitir 18 mil no mundo. O que acontecerá em Manaus?

A Microsoft vai demitir 18 mil no mundo, sendo que 12,5 mil são da recém comprada Nokia. Dada a importância da Nokia em Manaus, fui verificar o anúncio da Microsoft, que está na carta de Stephen Elop (presidente da área de celulares da Microsoft) anexa. Diga-se de passagem, uma carta muito mal escrita.
Ele menciona uma série de fábricas no mundo que eles pretendem fechar, inclusive em Oulu (Finlândia) e Komaron (Hungria), fábricas que vão reduzir operações (Beijing e Dongguan na China), centros de pesquisa que serão diminuídos (San Diego, EUA e Beijing, China). Dentre estes muitos cortes, ele menciona Manaus como um lugar para onde eles pretendem "transferir mais manufatura da Microsoft".
Aparentemente, uma boa notícia, ao menos no curto prazo, para o ecossistema Nokia em Manaus, para a saúde do PIM e para o Amazonas.

27 November 2013

Comentários de Jacques Marcovitch sobre o livro "Onde estão as flores?" de Ilko Minev

Uma lição de esperança
Jacques Marcovitch



A partir dos clássicos inesquecíveis de Primo Levi ganharam destaque, em todo o mundo, a memorialística e a ficção de autores judeus inspiradas nos acontecimentos dos anos 1930 e 1940.

Guiadas pelo mesmo fio condutor da verdade, muitas obras pós‐Levi conquistaram grande acolhida por leitores das mais diversas nacionalidades. Aqui no Brasil, como sabemos, vieram à luz trabalhos de grande valor em torno do tema. Um deles, mais recentemente, foi o romance de Ilko Minev. As páginas de “Onde estão as flores” inscrevem-se entre as mais pulsantes e motivadoras de reflexão.

Transformar desventuras em patrimônio de uma vida significativa é a lição que Licco Hazan, personagem da trama em análise, transmite aos acompanhantes de sua trajetória.

Nascido em Sofia, Hazan vive sua adolescência no período que Timothy Snyder aponta como a mais terrível calamidade moral e demográfica na história moderna. Uma catástrofe marcada por assassinatos em massa pelos regimes nazista e soviético nos períodos em que ganharam ímpeto.

Imigrante judeu búlgaro, Licco conta como sobreviveu aos seus poderosos carrascos para se tornar décadas depois, o pioneiro capaz de erigir um legado que transcende sua existência.

Órfão de mãe aos dois anos e de pai aos nove anos idade, ele é conduzido, ainda jovem, aos campos de trabalhos forçados, onde aprende a lidar com os infortúnios para sobreviver.

De Sofia a Istambul, obtém um visto de entrada para o Brasil e segue pelo estreito de Gibraltar para o Porto de Santos. Ali não chegam, nem ele, nem sua amada Berta. Transportados por um navio à deriva, são forçados a desembarcar em Belém do Pará.

Ele mecânico, ela contadora, estabelecem‐se para conquistar novos horizontes, amparados por seus valores e pela disposição de trabalhar. Valores forjados no convívio com os descendentes da comunidade de judeus marroquinos que emigraram para Amazônia.

Iniciava-se, então, uma nova fase institucional no Brasil com a sua independência em 1822. A Constituição Federal de 1824 já assegurava a liberdade religiosa e valorizava o mérito, como descreve Maria Luiza Tucci Carneiro em sua obra “Brasil Judaico: Mosaico de Nacionalidades” (Editora Maayanot, 2013).

A rica narrativa da travessia do Atlântico lembra os figurantes da tela “Navio de Emigrantes”, de Lasar Segall, que retrata, nesta grandiosa alegoria da emigração, diferentes tipos humanos em viagem para o Novo Mundo.

Eram ocupantes do mesmo barco cuja diversidade de origens produziam o ruidoso cruzamento. Notado por Licco Hazan, “dos idiomas iídiche, alemão, russo, árabe, grego holandês, francês, tcheco, búlgaro, sérvio, espanhol, húngaro, português, inglês e línguas escandinavas”.

Esperançosos, apesar da fragilidade de seus destinos, tornaram-se perseverantes e realizaram seus sonhos.

Passaram a ser fontes de aprendizagem e inspiração, conquistando uma segunda vida na mente dos seus descendentes.

Em poucos anos estudaram e conheceram as possibilidades do novo mundo que passaram a habitar. Fizeram-se importantes exportadores do óleo de pau-rosa, fixador utilizado na indústria de cosméticos, e do bálsamo de copaíba com suas propriedades anti‐inflamatórias e das sementes de cumaru apreciadas pelo seu aroma.

Enfrentam, na Amazônia, a barreira de outros hábitos e idioma, costumes e regras sociais. Com isso, desenvolvem o respeito pelo outro, alcançam resultados inconcebíveis nas suas caminhadas e desenvolvem uma capacidade incomum de resiliência.

Sua experiência leva-os a formular a síntese da boa gestão com palavras singelas e exatas: “Uma boa administração tem muito a ver com bom senso, honestidade e simplicidade”. Ou “quando se acerta no alvo em algum negócio ou produto, os lucros vêm rápido. Da mesma forma os erros geram prejuízos implacáveis, então é preciso estancar o sangramento, não se pode ter pena. Tem que cortar na carne, engolir o prejuízo e seguir em frente”.

A crença dos personagens no Brasil é inabalável. Afirmam que o remédio para os males nacionais estão em três prioridades: simplificação tributária, reforma política para melhorar a governança pública e desburocratização da legislação ambiental.

Expostos desde jovens a adversidades e choques culturais, sua infância e adolescência foram marcadas por momentos de tensões e penúria na vida pessoal que os levaram a tentar obstinadamente, com êxito, uma vida de superação.

Em vez de se conformar às aparentes impossibilidades, aprenderam a localizar a saída no labirinto da vida. Confirmaram, com seus movimentos, que apesar de todos os infortúnios é possível construir uma vida significativa e contribuir para um mundo melhor.

O romance “Onde estão as flores”, de Ilko Minev, é obra de consulta indispensável para estudiosos dos fluxos migratórios que chegaram ao Brasil e contribuíram para o desenvolvimento de uma nova pátria. Leitura recomendável para educadores e jovens empenhados na construção de seus projetos de vida.

Livro: Onde estão as flores? Autor : Ilko Minev
Editora Virgilae, 2014

Lancamento 02.12.13 na Livraria da Vila Shopping Higienopolis, São Paulo

28 August 2013

Discurso de Martin Luther King Jr. - I Have a Dream

Título: Eu tenho um sonho

Eu estou contente em unir-me com vocês no dia que entrará para a história como a maior demonstração pela liberdade na história de nossa nação.

Cem anos atrás, um grande americano, na qual estamos sob sua simbólica sombra, assinou a Proclamação de Emancipação. Esse importante decreto veio como um grande farol de esperança para milhões de escravos negros que tinham murchados nas chamas da injustiça. Ele veio como uma alvorada para terminar a longa noite de seus cativeiros.
Mas cem anos depois, o Negro ainda não é livre.
Cem anos depois, a vida do Negro ainda é tristemente inválida pelas algemas da segregação e as cadeias de discriminação.
Cem anos depois, o Negro vive em uma ilha só de pobreza no meio de um vasto oceano de prosperidade material. Cem anos depois, o Negro ainda adoece nos cantos da sociedade americana e se encontram exilados em sua própria terra. Assim, nós viemos aqui hoje para dramatizar sua vergonhosa condição.

De certo modo, nós viemos à capital de nossa nação para trocar um cheque. Quando os arquitetos de nossa república escreveram as magníficas palavras da Constituição e a Declaração da Independência, eles estavam assinando uma nota promissória para a qual todo americano seria seu herdeiro. Esta nota era uma promessa que todos os homens, sim, os homens negros, como também os homens brancos, teriam garantidos os direitos inalienáveis de vida, liberdade e a busca da felicidade. Hoje é óbvio que aquela América não apresentou esta nota promissória. Em vez de honrar esta obrigação sagrada, a América deu para o povo negro um cheque sem fundo, um cheque que voltou marcado com "fundos insuficientes".

Mas nós nos recusamos a acreditar que o banco da justiça é falível. Nós nos recusamos a acreditar que há capitais insuficientes de oportunidade nesta nação. Assim nós viemos trocar este cheque, um cheque que nos dará o direito de reclamar as riquezas de liberdade e a segurança da justiça.

Nós também viemos para recordar à América dessa cruel urgência. Este não é o momento para descansar no luxo refrescante ou tomar o remédio tranqüilizante do gradualismo.
Agora é o tempo para transformar em realidade as promessas de democracia.
Agora é o tempo para subir do vale das trevas da segregação ao caminho iluminado pelo sol da justiça racial.
Agora é o tempo para erguer nossa nação das areias movediças da injustiça racial para a pedra sólida da fraternidade. Agora é o tempo para fazer da justiça uma realidade para todos os filhos de Deus.

Seria fatal para a nação negligenciar a urgência desse momento. Este verão sufocante do legítimo descontentamento dos Negros não passará até termos um renovador outono de liberdade e igualdade. Este ano de 1963 não é um fim, mas um começo. Esses que esperam que o Negro agora estará contente, terão um violento despertar se a nação votar aos negócios de sempre

. Mas há algo que eu tenho que dizer ao meu povo que se dirige ao portal que conduz ao palácio da justiça. No processo de conquistar nosso legítimo direito, nós não devemos ser culpados de ações de injustiças. Não vamos satisfazer nossa sede de liberdade bebendo da xícara da amargura e do ódio. Nós sempre temos que conduzir nossa luta num alto nível de dignidade e disciplina. Nós não devemos permitir que nosso criativo protesto se degenere em violência física. Novamente e novamente nós temos que subir às majestosas alturas da reunião da força física com a força de alma. Nossa nova e maravilhosa combatividade mostrou à comunidade negra que não devemos ter uma desconfiança para com todas as pessoas brancas, para muitos de nossos irmãos brancos, como comprovamos pela presença deles aqui hoje, vieram entender que o destino deles é amarrado ao nosso destino. Eles vieram perceber que a liberdade deles é ligada indissoluvelmente a nossa liberdade. Nós não podemos caminhar só.

E como nós caminhamos, nós temos que fazer a promessa que nós sempre marcharemos à frente. Nós não podemos retroceder. Há esses que estão perguntando para os devotos dos direitos civis, "Quando vocês estarão satisfeitos?"

Nós nunca estaremos satisfeitos enquanto o Negro for vítima dos horrores indizíveis da brutalidade policial. Nós nunca estaremos satisfeitos enquanto nossos corpos, pesados com a fadiga da viagem, não poderem ter hospedagem nos motéis das estradas e os hotéis das cidades. Nós não estaremos satisfeitos enquanto um Negro não puder votar no Mississipi e um Negro em Nova Iorque acreditar que ele não tem motivo para votar. Não, não, nós não estamos satisfeitos e nós não estaremos satisfeitos até que a justiça e a retidão rolem abaixo como águas de uma poderosa correnteza.

Eu não esqueci que alguns de você vieram até aqui após grandes testes e sofrimentos. Alguns de você vieram recentemente de celas estreitas das prisões. Alguns de vocês vieram de áreas onde sua busca pela liberdade lhe deixaram marcas pelas tempestades das perseguições e pelos ventos de brutalidade policial. Você são o veteranos do sofrimento. Continuem trabalhando com a fé que sofrimento imerecido é redentor. Voltem para o Mississippi, voltem para o Alabama, voltem para a Carolina do Sul, voltem para a Geórgia, voltem para Louisiana, voltem para as ruas sujas e guetos de nossas cidades do norte, sabendo que de alguma maneira esta situação pode e será mudada. Não se deixe caiar no vale de desespero.

Eu digo a você hoje, meus amigos, que embora nós enfrentemos as dificuldades de hoje e amanhã. Eu ainda tenho um sonho. É um sonho profundamente enraizado no sonho americano.

Eu tenho um sonho que um dia esta nação se levantará e viverá o verdadeiro significado de sua crença - nós celebraremos estas verdades e elas serão claras para todos, que os homens são criados iguais.

Eu tenho um sonho que um dia nas colinas vermelhas da Geórgia os filhos dos descendentes de escravos e os filhos dos desdentes dos donos de escravos poderão se sentar junto à mesa da fraternidade.

Eu tenho um sonho que um dia, até mesmo no estado de Mississippi, um estado que transpira com o calor da injustiça, que transpira com o calor de opressão, será transformado em um oásis de liberdade e justiça.

Eu tenho um sonho que minhas quatro pequenas crianças vão um dia viver em uma nação onde elas não serão julgadas pela cor da pele, mas pelo conteúdo de seu caráter. Eu tenho um sonho hoje!

Eu tenho um sonho que um dia, no Alabama, com seus racistas malignos, com seu governador que tem os lábios gotejando palavras de intervenção e negação; nesse justo dia no Alabama meninos negros e meninas negras poderão unir as mãos com meninos brancos e meninas brancas como irmãs e irmãos. Eu tenho um sonho hoje!

Eu tenho um sonho que um dia todo vale será exaltado, e todas as colinas e montanhas virão abaixo, os lugares ásperos serão aplainados e os lugares tortuosos serão endireitados e a glória do Senhor será revelada e toda a carne estará junta.

Esta é nossa esperança. Esta é a fé com que regressarei para o Sul. Com esta fé nós poderemos cortar da montanha do desespero uma pedra de esperança. Com esta fé nós poderemos transformar as discórdias estridentes de nossa nação em uma bela sinfonia de fraternidade. Com esta fé nós poderemos trabalhar juntos, rezar juntos, lutar juntos, para ir encarcerar juntos, defender liberdade juntos, e quem sabe nós seremos um dia livre. Este será o dia, este será o dia quando todas as crianças de Deus poderão cantar com um novo significado.

"Meu país, doce terra de liberdade, eu te canto.

Terra onde meus pais morreram, terra do orgulho dos peregrinos,

De qualquer lado da montanha, ouço o sino da liberdade!"

E se a América é uma grande nação, isto tem que se tornar verdadeiro.

E assim ouvirei o sino da liberdade no extraordinário topo da montanha de New Hampshire.

Ouvirei o sino da liberdade nas poderosas montanhas poderosas de Nova York.

Ouvirei o sino da liberdade nos engrandecidos Alleghenies da Pennsylvania.

Ouvirei o sino da liberdade nas montanhas cobertas de neve Rockies do Colorado.

Ouvirei o sino da liberdade nas ladeiras curvas da Califórnia.

Mas não é só isso. Ouvirei o sino da liberdade na Montanha de Pedra da Geórgia.

Ouvirei o sino da liberdade na Montanha de Vigilância do Tennessee.

Ouvirei o sino da liberdade em todas as colinas do Mississipi.

Em todas as montanhas, ouviu o sino da liberdade.

E quando isto acontecer, quando nós permitimos o sino da liberdade soar, quando nós deixarmos ele soar em toda moradia e todo vilarejo, em todo estado e em toda cidade, nós poderemos acelerar aquele dia quando todas as crianças de Deus, homens pretos e homens brancos, judeus e gentios, protestantes e católicos, poderão unir mãos e cantar nas palavras do velho spiritual negro:

"Livre afinal, livre afinal.

Agradeço ao Deus todo-poderoso, nós somos livres afinal.

20 June 2013

Cidadãos, barricadas e a vaia que eclodiu sobre a nação

Artigo publicado no Jornal A Crítica em 20 de junho de 2013 - por Denis Benchimol Minev - denis.minev@gmail.com


O Brasil ouviu nesta semana uma vaia que ecoou do Oiapoque ao Chuí.  Somos (ou éramos) um país ainda de excessivo respeito à autoridade; a afronta pública da líder da nação mostrou ao brasileiro a possibilidade de enfrentamento direto, pessoal e intransferível, que é característica de democracias mas ausente na psico-formação do brasileiro.  

Nós cidadãos do Brasil historicamente não nos levantamos.  Os grandes atos de nossa história, antiga e recente (independência, proclamação da república, fim do governo militar, impeachment do Collor, dentre outros), foram construídos por acordos políticos e não por pressão popular esmagadora.  Exemplos: Collor incrivelmente nunca foi preso e foi permitido seu retorno ao Senado; nenhum militar, não importa o quão hediondos seus crimes durante a ditadura, foi preso por isso; os militares controlaram, a seu próprio ritmo, a redemocratização do país; nem mesmo nossa querida independência foi alcançada por vontade popular, mas sim por um acordo de pai para filho; a proclamação da república foi feita sem sangue, no tempo do monarca e não da vontade do povo; nem guilhotinamos o imperador, o deixamos fugir em paz.  Mais recentemente o Mensalão também não causou grande comoção social, afora postagens em redes sociais.  Nunca tomamos o Congresso ou o Palácio do Planalto, em toda nossa história.  “Diretas já” e “caras pintadas” foram momentos de clara importância mas particulares e isolados, sem as consequências alongadas de um levante psíquico.

O Brasil portanto não contem (ainda), no seu rol de possibilidades imaginárias, a auto-consciência de que o poder repousa nas mãos de seus cidadãos.  E estes, quando se levantam, podem mudar seu rumo como nação.  O reconhecimento de seu poder como povo soberano, acima do poder de seus governantes, deve ser o mais importante legado deste levante se ele for duradouro.  

O segundo mais importante legado deve ser a infiltração do medo nas autoridades e instituições.  Não o terror, mas o medo.  É preciso que o governo e instituições associadas compreendam que nós não somos (mais) mansos e nosso senso de fraqueza e pequenez perante autoridades não mais existe.  Autoridades o são para nos servir.  E devem ter medo, sim, de nos servir mal, desde o atendimento em hospitais, delegacias e escolas públicas até o governante de plantão.  Medo de aumentar uma tarifa de ônibus sem consulta.  Medo é mais adequado que respeito, que suspeito seria pedir muito.  É saudável que cidadãos guardem um grau (limitado) de respeito pelas instituições de poder; uma sociedade não funciona sem elas.  Mas o nosso nível é além de respeito, mais parecido com reverência e prostração.

Aos críticos do movimento, a resposta é que estes protestos fazem parte de um processo longo, de um povo tentando no escuro conhecer seu ambiente e suas possibilidades, enquanto educa suas próprias instituições (polícia, sistemas de educação, saúde, governos e prefeituras, dentre outros) das suas expectativas e limitada tolerância para mal tratamento.  É preciso paciência.  Talvez você chegue em casa mais tarde do trabalho.  Muitos dos argumentos dos manifestantes são conflitantes ou mesmo não fazem sentido.  Faz parte do processo de maturidade política de um povo.  Do outro lado (que pode ser dentro de 10 ou 50 anos), emergirá um país melhor.  O que não é aceitável, até por não ser verdade, é a usual postura de “é assim mesmo” e ignorá-los como baderneiros.  Não é assim mesmo.  Poucos são baderneiros.  

Para ilustrar essa possibilidade, gostaria de tomar os próximos parágrafos para lembrar o mais famoso levante popular do século passado, iniciado de forma não tão diferente do nosso.  No dia 10 de maio de 1968 acontecia em Paris um protesto estudantil que eventualmente paralizaria o país e derrubaria o governo.  Deixou o legado no imaginário local de que o povo francês é capaz de diretamente influenciar o curso de eventos, de que o cidadão não é impotente perante a mística de poder do estado.  A transformação de sua auto-imagem já dura mais de 40 anos e ressoa na eternidade a cada mega-protesto (e são muitos) que a população francesa conduz.  

20 mil estudantes protestavam em Paris por motivos paroquiais inicialmente (a rigidez da administração antiquada da Sorbonne e Nanterre); cresceu para uma revolta de jovens impacientes contra poderosos e inflexíveis, trazendo consigo causas ligadas ao fim do comunismo, o fim do capitalismo, fim das guerras, combinado com uma generosa dose de hormônios.  O impulso juvenil contra tudo antiquado, rígido e autoritário ganhou contornos que surpreenderam até os protagonistas, expandindo-se para Berlim, Roma, e Nova Iorque, sempre tomando forma contra governos, fossem eles de esquerda ou de direita.  Não é muito diferente de um protesto inicial contra a elevação da tarifa de ônibus ou uma vaia de uma presidente num importante evento.

Na França de 1968 emergia a geração do pós-Guerra, com enorme expansão da educação universitária, para a qual o mundo era cheio de possibilidade, os meios de comunicação (TVs principalmente) se disseminavam com as primeiras transmissões ao vivo e permitiam a impressão de um presente compartilhado.  No Brasil, nos últimos 20 anos, vimos a emersão da primeira geração de grande volume de estudantes universitários.  No bojo desta geração nasce um novo idealismo brasileiro, dentro da nossa 2a classe média, aquela que é morena, estuda a noite, abre um pequeno negócio e é desprovida de QI (quem indique).  Ela sonha não só com os produtos dos comerciais de TV, mas também com uma vida repleta de conquistas melhor definidas das novelas e romances, como diria o Prof. Roberto Mangabeira Unger.  Naturalmente não recebe as benesses do governo (estas reservada para a antiga classe média) e o vê com desconfiança.  A polícia e as instituições nem sempre estiveram ou estão do seu lado.

Em Paris, não se sabia como terminariam os protestos.  A sequência de eventos viu as reações do governo se tornarem cada vez mais agressivas.  Em múltiplos casos a polícia agrediu manifestantes com violência desmedida, enchendo as ruas que cercam as universidades parisienses de gás lacrimogênio e sangue.  Os estudantes responderam com fogo, fumaça e barricadas, de forma desorganizada mas consciente.  A TV, ao vivo, transmitiu para toda a França as imagens, o que fez com que protestos eclodissem em universidade em todo o país.  Lembra algum lugar?  De São Paulo a Manaus em menos de um dia.

Os próximos passos na França viram a adesão da sociedade em geral aos protestos (centrais sindicais e sociedade civil organizada como um todo).  Slogans como “Seja realista: demande o impossível” e “A Revolução é inacreditável por ser real” alimentaram os espíritos da nação nas semanas seguintes, criando um senso de comunidade dentre os protestantes e ao redor das barricadas que já tomavam grande parte das cidades francesas.  Os movimentos sindicais se juntaram aos protestos e paralizaram indústrias e transportes na França, finalmente colocando o governo de joelhos.  O general De Gaulle, presidente àquela altura, fugiu do país para a Alemanha com receio dos manifestantes invadirem o palácio presidencial e no dia 30 de maio dissolveu o congresso e convocou eleições antecipadas para a formação de um novo governo.  Com estas concessões, o povo iniciou o processo de retorno à vida.  Entretanto, o poder do imaginário, uma vez libertado, não retorna ao mesmo formato anterior.  A compreensão da parte de um povo de sua capacidade de ditar seus rumos é um conceito simples mas revolucionário.  Conflita com o “é assim mesmo” tão comum em nosso país.  

Como será que este processo evoluirá no Brasil?  Depende, em grande, de quem se juntará aos protestos e quem teria rabo preso e ficará ao lado de instituições opressivas desenhadas em uma outra era para atender interesses que hoje já não são mais maioria.  A 2a classe média busca o seu lugar num país que não está pronto a recebê-la -- nem nas ruas (vide engarrafamentos), nem nas universidades, nem nas escolas, delegacias e hospitais, nem no convívio social.  A antiga classe média vê seu espaço reduzido no funcionalismo público e nas profissões liberais, em meio a médicos cubanos e o avanço da 2a.  Somos um povo sem rumo.  O governo, perdido neste contexto, abandona seu papel de criador de uma visão de futuro coerente para o país em busca de paliativos.  Dilma tem virtudes, mas não é inspiradora; serviu bem como ministra.  Certamente não mereceu aplausos.  Não fez o seu papel, de presidente, de engrandecer o espírito de um povo a ser melhor e a buscar a própria redenção, como tanto Lula quanto Fernando Henrique fizeram, de formas diferentes.  

Portanto vá às ruas ver os seus co-cidadãos acordarem para as possibilidades da democracia e do governo do povo.  Essas não são possibilidades novas, árabes recentemente viveram momento semelhante.  Eu irei, pacificamente, empunhando o celular para gravar tudo e transmitir a um mundo cujos olhos estão tornados ao Brasil.

E mesmo que você não vá à rua, maravilhe-se de estar vivo para ver um povo (o seu) que deitava em berço não-tão-esplêndido se levantar e abrir os olhos para um mundo novo, com contornos de possibilidade nunca dantes vistos na nossa nação.  Longa vida ao Brasil.

28 May 2013

A Zona Franca de Manaus vale a pena (parte 2)



Talvez não por coincidência, um novo artigo foi publicado criticando a Zona Franca de Manaus, desta vez pelo economista do BNDES Marcelo Miterhof, no jornal A Folha de São Paulo.  Cabe mencionar que críticas construtivas são sempre bem vindas e nos ajudam a aprimorar o modelo.  Entretanto, esta em particular não aparenta pertencer a esta tradição.

O “ilustre” economista critica três itens em particular: poucos resultados de P&D na indústria de eletro-eletrônicos, a inexistência de imposto de renda na Zona Franca desestimularia investimentos em P&D de acordo com a Lei do Bem e o setor de eletro-eletrônicos no PIM gera empregos com remuneração muito baixa.   Segundo o autor, estes três itens deveriam causar uma reflexão a respeito do atual modelo.  Comento a seguir a respeito de cada um.

Primeiro, o autor menciona o faturamento de R$34,6 bilhões do setor de eletro-eletrônicos e indica que as empresas do segmento teriam a obrigação de aplicar 5% de seu faturamento em pesquisa e desenvolvimento.  Caso ele tivesse se incomodado de ler a legislação da Zona Franca, saberia que os 5% somente são devidos para bens de informática e não eletro-eletrônicos como um todo.  Dado que bens de informática compõem apenas 20% deste faturamento, o autor estimaria que R$1,7 bilhões é aplicado em P&D, quando este valor na verdade está mais próximo de R$350 milhões.  Óbvio que, se ele procura resultados para R$1,7 bilhões e a verdade é que apenas R$350 milhões são gastos, ele se decepcionará.  A pergunta que fica é se ele cometeu um “erro” matemático ou foi excesso de “criatividade”.

Segundo, o autor informa que a Zona Franca não paga imposto de renda.  Essa afirmação simplesmente não é verdadeira.  Há um incentivo parcial na ZF; quando no Brasil se paga 34% de IR/CS, na Zona Franca em alguns segmentos se paga 16,5%, o mesmo no norte e nordeste todo (surpreendentemente não mencionados).  Curioso que tal informação escape a um economista do BNDES.

Terceiro, o autor considera a média salarial do setor de eletro-eletrônicos (R$3.208) muito baixa, e suporta tal evidência com a média do pólo de duas rodas da ZF (R$4.702).  Entretanto, uma rápida consulta ao site da FIESP mostra que a média salarial da indústria no estado de São Paulo é de R$2.287; ou seja, num setor “ruim” da ZF se ganha 40% mais do que na média da indústria de São Paulo.  No segmento de duas rodas a remuneração na ZF é mais que o dobro da paulista.  Nada mal para a Zona Franca... 

Com tantos erros fáticos e dados manipulados, não é surpresa que o BNDES não compreenda a Amazônia e portanto não apareça por aqui.  Apenas como exemplo, o BNDES assumiu a gestão do Fundo Amazônia em 2009, recursos advindos de doação para a Amazônia da Noruega.  Além de engolir 3% ao ano em taxa de administração (altíssima comparada a qualquer instituição de mercado), ele decidiu como sede do Fundo Amazônia não Manaus, não Belém, mas... Rio de Janeiro.  Suspeito que administrá-lo a partir da praia de Ipanema deva ser realmente mais agradável do que na mosquitarada amazônica.  Só não é o certo. 

Existem, é claro, críticas legítimas à Zona Franca de Manaus.  Nossos economistas estão certamente prontos a debatê-la em busca de melhorá-la.  Entretanto, é preciso que ao menos as críticas sejam baseadas em informações corretas.  Cada um tem o direito a suas próprias opiniões, mas não a seus próprios dados.


Denis Benchimol Minev
denis.minev@gmail.com

15 May 2013

A Zona Franca de Manaus vale a pena



Há algumas semanas foi publicado um estudo da Consultoria do Senado Federal a respeito de supostos custos bilionários que a Zona Franca de Manaus (ZFM) geraria ao país.  Trazia os incendiários argumentos de que a ZFM gera muitos custos ao país, deveria ter prazo limitado e é subsidiada por perdas nos demais municípios e estados brasileiros.  É importante notar que este não é um estudo científico; artigos científicos estão sujeitos a revisão por pares, processo no qual o trabalho se sujeita ao escrutínio de especialistas ou revisores.  Seguem comentários que qualquer revisor teria feito ao trabalho.

O primeiro argumento se baseia no fato de que o IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados), após arrecadado, seria distribuído dentre todas as unidades da Federação.  Dado que a ZFM não paga IPI, estaria subtraindo tais valores de todos os cidadãos.  Este argumento é falho.  Incentivos de redução de alíquota não são gastos.  Como exemplo, o IPI de motocicletas é de 35%.  Ou seja, caso alguma empresa escolha produzir motocicletas fora da Zona Franca, teria de pagar 35% de imposto; caso produza em Manaus, não paga IPI.  Dado o faturamento em 2012 de cerca de R$14 bilhões com o pólo de duas rodas em Manaus, o autor argumenta que o resto do Brasil está “pagando” de incentivos de IPI R$5 bilhões.  No caso hipotético de ter de pagar R$5 bilhões, é pouco provável que essas indústrias produziriam no Brasil ou mesmo que o número de motocicletas vendidas seria alto.

Este mesmo argumento vale para o setor automobilístico de São Bernardo do Campo (com IPI muito inferior), ao setor de eletrodomésticos do Paraná, Minas Gerais e São Paulo, dentre outros, que tiveram o IPI reduzido ou eliminado em 2012.  Outro caso foi a indústria de informática, que para nascer no Brasil precisou da Lei de Informática; coincidentemente, esta lei muito se assemelha à lei da ZFM.  Não se vê argumentos de que precisamos descontinuar em breve os incentivos da Lei de Informática; pelo contrário, a Presidente Dilma recentemente aprofundou os incentivos retirando o PIS/COFINS de tablets.  Há muitos casos semelhantes espalhados por todo o Brasil: grandes indústrias nacionais como EMBRAER não pagam quase nada de impostos e ainda são constantemente subsidiadas através de gastos públicos, desde empréstimos do BNDES, isenção de IPI e PIS/COFINS, à sustentação do ITA para gerar mão-de-obra, investimentos que faremos a perder de vista (sem prazo).  Portanto, o argumento do autor de que todo tipo de incentivo só deveria ser válido por tempo limitado não se sustenta.  

O estudo ainda argumenta que uma das fragilidades da Zona Franca é gerar poucos empregos com baixa remuneração.  A redução de mão-de-obra no segmento industrial é um fenômeno observado no mundo todo.  Isto não é privilégio de Manaus; todas as cidades industriais do mundo têm este desafio.  Para competir, indústrias precisam ser cada vez mais produtivas; o fato de a ZFM conseguir grande produtividade com pouco volume de empregados ou salários (5,7% do faturamento industrial é gasto com salários) deveria ser considerado testamento de sua competitividade e sustentabilidade, e não o contrário.

Há outros pontos problemáticos com o estudo: por exemplo, a rentabilidade das indústrias de Manaus é bem pequena comparada com os supostos incentivos.  Fica a pergunta, para onde vai esse dinheiro?  A resposta é, para o bolso dos consumidores que compram motocicletas e TVs, ou seja, os benefícios se distribuem Brasil afora.  O suposto “gasto” com a ZFM na verdade é uma redistribuição, do erário para consumidores.  Onde tais recursos estariam melhor guardados?

Há, além disso, um erro matemático de importância.  O autor afirma que o Governo Federal estima arrecadar na região norte R$14 bilhões em 2013, o que seria menos que o total de isenções fiscais estimado em R$22 bilhões (neste caso para a região toda e não apenas Manaus).  Somente no Amazonas (menos de metade do PIB do norte) a Receita Federal arrecadou R$10 bilhões em 12 meses, sem contar receita previdenciária.  Um erro claro, provavelmente não intencional, certamente danoso.

Benefícios da ZFM não são considerados no estudo.  O Amazonas tem hoje 98% de seu território conservado em floresta tropical de pé.  Nenhum outro estado brasileiro, a exceção do Amapá, pode afirmar o mesmo.  E não é porque o Amazonas ama a floresta mais que outros.  Pode-se mostrar a forte ligação econométrica do desenvolvimento da ZFM com a redução das taxas de desmatamento.  O Brasil tem escolhas a fazer; a Zona Franca de Manaus é das melhores. 


Denis Benchimol Minev

03 March 2013

Ciência na Amazônia: Mito ou Realidade? - Artigo em Comemoração aos 10 anos da FAPEAM
por Denis Minev

A FAPEAM (Fundação de Amparo à Pesquisa no Amazonas) acaba de completar 10 anos de existência.  Tive a honra de servir entre os anos de 2007 e 2013 como membro do conselho superior da instituição, cargo que abracei com dedicação e orgulho (e sem remuneração).  

Gostaria de tomar alguns minutos do seu tempo para uma reflexão a respeito desta instituição, sua missão, conquistas e deficiências.  O cenário inicial, no nem tão longínquo ano de 2002, era precário.  Um estado de pouco mais de 3 milhões de habitantes tinha menos de 300 doutores (PhDs) dentre seus cidadãos.  O nó da mão-de-obra se iniciava por aí, pois sem doutores, que chance temos de treinar bons mestres ou graduandos?  As opções para formação de mão-de-obra de alto nível se restringiam a olhar e piscar para um governo federal que insistiam em namorar com USP e UNICAMP.  Os poucos que conseguiam patrocínios de CAPES e CNPQ para longe daqui buscar sua formação nem sempre (ou quase nunca) voltavam, atraídos em geral pelo canto do saber do sudeste.

E hoje?  Dez anos é tempo suficiente para julgar uma política pública e seus impactos.  Quanto foi gasto?  R$277 milhões de reais é a soma dos gastos todos da FAPEAM em 10 anos.  Menos que metade de um estádio.  Mais de 800 bolsas de douturado foram concedidas, mais de 1.800 de mestrado, mais de 10 mil bolsas de pesquisa para graduação, mais de 6 mil bolsas de pesquisa no ensino médio.  Visite o site contesuahistoria.fapeam.am.gov.br para ver alguns relatos de vidas transformadas por esta pequena instituição, indo desde o financiamento da pesquisa do empresário Mário Oiram para desenvolver o vinho de cupuaçu até a Priscila Souza que odiava química no 2o grau mas foi expor na República Tcheca o desenvolvimento do sabão de óleo de fritura.  O foco na pesquisa de ordem amazônica tem também ajudado a criar centros de excelência no Amazonas em áreas como saúde (FIOCRUZ, Fundação de Medicina Tropical, Fundação Alfredo da Matta, dentre outros), engenharias (na UFAM e UEA) e biológicas (no INPA e UFAM principalmente).  A partir de 2007, iniciou-se também o processo de estímulo à pesquisa em empresas (PAPPE) e ao empreendedorismo, culminando com o patrocínio à criação de incubadoras de empresas inovadoras em instituições de pesquisa.  Em 2013 a FAPEAM patrocinará duas disputas de planos de negócio (com a FGV e com a FUCAPI) como forma de estimular a reflexão sobre novos negócios.  Sem falar no apoio irrestrito da FAPEAM desde a criação do Prêmio Samuel Benchimol, marco na geração de idéias por uma Amazônia melhor.  

E deficiências?  Como qualquer instituição, há sucessos e insucessos.  Entretanto, como mostram os indicadores, há muitos avanços a um baixo custo.  Daí a crítica: a FAPEAM é pequena demais.  Orçamentos de 8 dígitos (dezenas de milhões) não condizem com a missão de transformar uma realidade e criar o conhecimento da Amazônia que liderará um povo no século XXI.  Hoje, o que tiramos da floresta?  Como tocamos nela?  Precisamos falar em nove dígitos, centenas de milhões (ou ao menos uma centena para começar) para responder estas perguntas de forma que não sintamos vergonha ou angústia.

Sob a gestão dos distintos José Aldemir, Odenildo e Maria Olívia, a FAPEAM mostra um caminho estreito em terra batida para uma nova economia amazônica.  Sem ciência ele não se alargará ou será asfaltado.  Neste espírito, se convencido estiver o leitor, faço-lhe um pedido.  Que apoie os nove dígitos!  Ligue para seu deputado estadual e peça.  Vote em quem os propuser.  Se o governo federal não escolheu nos priorizar, escolhamos nós mesmos tomar as rédeas de nosso destino.  Chega de choramingar.

29 May 2012

Preocupa-te Amazonas! ou Um argumento sobre o triste destino reservado a sociedades industriais complacentes


Preocupa-te Amazonas!
ou Um argumento sobre o triste destino reservado a sociedades industriais complacentes
Denis Minev

Esta exposição tem o objetivo principal de alarmar.  O processo de mudança precisa ser iniciado com o reconhecimento de que é necessário mudar.  O Amazonas e sua querida Zona Franca ainda não atingiram tal grau de consciência; enquanto não o fizer, quaisquer processo de mudança que implique grande esforço ou sacrifício tende ao fracasso.  Em tal cenário, apenas melhorias pequenas e incrementais, também importantes porém insuficientes, tem chance de sucesso.  Nas próximas poucas páginas busca-se preocupar o leitor com as perspectivas da Zona Franca e da economia do Amazonas como um todo, criando assim as circunstâncias necessárias para a conscientização dos graves riscos que se corre, pressuposto na libertação de modelos mentais desatualizados e na busca de soluções para o futuro.

O argumento principal oferecido aqui é que cidades que basearam seu desenvolvimento econômico em grande parte em atividades industriais tiveram claros ciclos de pujança e decadência econômica.  Estes ciclos em geral coincidem com fases do desenvolvimento dos países nos quais tais cidades se inserem.  Toma-se como exemplo dois países, EUA e Inglaterra, protagonistas do segmento industrial até meados do século XX que tiveram suas economias transformadas, chegando ao século XXI com maior prosperidade mas com diferenças de desenvolvimento interno dramáticas e sempre desfavoráveis a cidades cujo cerne econômico se baseava primariamente na indústria. 

Na Inglaterra do século XIX e XX, cidades como Glasgow e Manchester despontavam na produção industrial.  A partir aproximadamente do fim da II Guerra Mundial, ambas passaram por um declínio que as levou a perder metade de suas populações em meio a permanentes níveis exorbitantes de desemprego.  Apenas com um grande volume de migraçao e, finalmente, com a reinvenção da vocação econômica de ambas (voltadas a serviços) no fim do século XX que estas cidades puderam ressurgir, ainda que sem a importância que tiveram no contexto geopolítico do século passado.  O processo foi claro; a partir do momento em que a sociedade inglesa se viu enriquecer e alcançar patamares mais altos de bem estar e renda, indústrias grandes geradoras de empregos e consequentemente buscadoras de mão-de-obra barata desapareceram.  Houve grande transferência de importância, por exemplo, de cidades indústriais para cidades concentradoras de serviços, como foi o caso com Londres, que ganhou grande volume de importância e permanece no século XXI importante centro mundial mesmo com uma indústria insignficante. 





Nos EUA do século XIX e XX, processo semelhante ocorreu em cidades como Baltimore, Cleveland, Pittsburgh e Detroit.  Estas cidades estiveram no centro do grande avanço norte-americano que em meados do século XX atingiram a posição de grande potência econômica mundial.  O processo que se seguir viu os EUA continuarem a avançar em busca de uma eocnomia mais próspera e, a despeito da atual recessão, atingirem no século XXI níveis de prosperidade e bem estar indiscutivelmente altíssimos quando comparados a outros países.  A partir de um certo ponto de prosperidade, entretanto, o país iniciou processo de desindustrialização.  Como um todo, o processo não foi danoso à economia norte-americana; outros segmentos ligados a serviços cresceram e impuseram níveis de crescimento e renda muito superiores ao que seria possivel com uma sociedade primariamente industrial.  Entretanto, para algumas cidades como as citadas acima, este processo se traduziu em verdadeira catástrofe de proporções grandiosas e duradouras.  Cleveland, Detroit, Pittsburgh, St. Louis, Buffalo perderam metade da população que tiveram durante o auge, enquanto que cidades como Baltimore e Filadélfia perderam 25% da população.  O declínio durou no mínimo cincoenta anos e causou, assim como na Inglaterra, altíssimos níveis de desemprego com somente se reduziu com a migração de parte da população para regiões mais prósperas. 



Nestes dois países, o avanço da renda per capita causou a debandada de grande parte das indústrias, especialmente aquelas com maior conteúdo de mão de obra e portanto maiores empregadoras.  Com a entrada da segunda década do século XXI, o Brasil se encontra em um momento de sua história muito semelhante; o volume de atividades indústriais responde por mais de 30% do PIB nacional mas já nota-se uma perda da relevância indústrial em favor do maior crescimento da área de serviços.  No caso do Amazonas, temos uma situação complicada; até 2008 a indústria respondia ainda por 49% do PIB estadual.  Manaus é uma cidade de destaque industrial na mesma proporção que as anteriormente mencionadas eram em seus respectivos países.  Nos EUA e Inglaterra, não houve nenhum caso (NENHUM) de cidade predominantemente industrial que tenha prosperado em meio à transformação econômica.  Será este o destino de Manaus?? 

Respondo com segurança que temos alternativas.  Lográ-las vai requerer um grande volume de esforço concentrado e escolhas duras.  Algumas direções que podem fortalecer nossas vantagens comparativas e estancar e reverter processos como os mencionados acima de inanição incluem:
  • A integração de produtos amazônicos na cadeia de produção indústrial da Zona Franca
  • A cadeia de energia (gás, petróleo e derivados)
  • Maior utilização de recursos naturais (produtos madeireiros, minérios, carbono, água, peixes, etc.)
  • Serviços (entreposto cultural, científico, político e logístico no centro/norte da América do Sul)
  • Turismo

Entretanto esta é uma conversa para outro dia.  Antes, é preciso que os amazonenses estejam verdadeiramente preocupados com o seu futuro.

29 June 2011

Apresentação sobre desenvolvimento sustentável na Amazônia

Feita na Conferência LIGE - Green Economy: Institutional and Legal Implications.  Agradeço comentários.
http://lige2011.mgt.unm.edu/



31 May 2011

DEPRESSÃO, DÉBÂCLE E BANCARROTA.

TEXTO INÉDITO DE SAMUEL BENCHIMOL SOBRE A CRISE DA BORRACHA.

Contribuição de Anne Benchimol.

Samuel Benchimol - 1994


Os franceses chamaram débâcle, os italianos bancarrota, os americanos crack, os latinos crise. Em bom português quebra, falência ou colapso. Não importa o nome. O importante é assinalar que depois do período do apogeu, o ciclo da borracha, após e já no segundo semestre de 1910, dava o sinal de ruptura nos pregões da Bolsa e nos centros internacionais de consumo e de produção. Os 461.740 hectares de seringueiras plantadas no oriente asiático anunciavam uma produção de 152.000 toneladas para 1916 que acrescidas da produção amazônica e africana, ultrapassava o consumo esperado de menos de 190.000 toneladas.

No ano de 1910, a Amazônia, nas estatísticas da Sudhevea, produzia 40.800 toneladas, enquanto a Ásia apenas 8.753 toneladas, porém em 1915 haviam sido plantados no Oriente cerca de um milhão de hectares de seringueiras, o que prenunciava uma grande superprodução na década os anos 20, quando, de fato, a Ásia chegou a produzir 380.000 toneladas, ultrapassando de muito a capacidade de consumo dos mercados mundiais.

A queda dos preços teria que ser assim inevitável. Os preços da Bolsa de Londres que, em 1909, oscilavam em torno de 3sh.3d. a 4sh.16d. a libra peso, tiveram uma violenta subida para o máximo de 20sh.15d. em 10 de maio de 1910 para, em seguida, no segundo semestre, cair para 10sh.2d. em junho, e 6sh.4d em dezembro desse ano. Para tornar mais fácil o significado dessas cotações, esses preços, quando convertidos em toneladas, expressavam uma cotação média de 964,5 libras esterlinas por tonelada em 1910 (equivalente a 49.469 libras de 1992, ou 74.203 dólares americanos de 1992, correspondente a 49,4 libras esterlinas ou 74,2 dólares o kilo, a preços do mercado spot (entregue) em Londres ou New York.

Em Manaus essa especulação altista foi amortecida por grande parte dos ganhos da Bolas e foram retidos pelos importadores, intermediários e stockistas das praças de Londres e New York, mas mesmo assim o mercado de Manaus que pagava uma média de 10$000 o kilo em novembro de 1910, teve o seu preço máximo atingido em 17$000 o kilo em abril de 1910. Já em dezembro desse exercício houve um recuo na especulação e os preços voltaram ao nível anterior de 6$800/7$800 ao final de dezembro. Pelas estatísticas de exportação da época nesse ano de 1910, o preço médio da tonelada exportada de todos os tipos, (incluindo borracha fina, de sernambi e caucho, que tinha a sua cotação fixada a níveis de 35%, mais baixos que a Pará – Fine Rubber) alcançou a 655 libras esterlinas a tonelada, equivalente a 1,44 o kilo correspondente a 336 esterlinas do poder de compra equivalente de 1992, ou 504 dólares se preferir usar o parâmetro da moeda americana. O valor da exportação desse ano de 38.547 toneladas a preço de 1992 alcançava, assim, o total de 1,3 bilhões de libras esterlinas, ou 1,9 bilhões de dólares atuais. Por aí se vê que os preços altos de 1910 provocaram uma euforia passageira, pois já no fim desse ano as cotações despencaram para menos da metade.

No ano seguinte de 1911, os preços oscilavam entre 7 sh. de fevereiro para 4sh.8d a libra peso de janeiro para 4sh.7d. em dezembro. Em 1913 a descida continuou, oscilando entre 4sh. e 3sh., e em 1914 os preços caíram ainda mais, variando de 3sh. de janeiro para 2sh.9d. a libra-peso em junho. Em termos de mil réis, as cotações das praças de Manaus depois de atingir os 17$000 o kilo em abril de 1910 arriava para 7$000 a 5$000 o kilo em 1911; se manteve estável em torno de 6$000 a 5$000 o kilo em 1912; caindo para 5$300 de janeiro de 1913 para 3$550 em dezembro; em 1914, a crise definitivamente se instalou, pois os preços nesse ano oscilaram de 3$650 até 4$000 o kilo; e em 1915 manteve-se a mesma tendência do ano anterior. Preços esses pagos pelos aviadores e exportadores da praça de Manaus que, em média, representavam cerca de 60 a 70% dos preços pagos aos seringalistas se tivessem que descontar os fretes dos seringais até a cidade e mais as despesas de impostos, taxas, capatazias, comissões e outras despesas que oneravam a borracha naquele tempo. Os seringalistas por sua vez, ao fazerem as suas contas aos seringueiros deduziam do preço vendido em Manaus, 10% de comissão e mais 10% a título de tara de quebra de peso. Assim, os seringueiros que haviam recebido cerca de 7$000 a 8$000 o kilo no auge de 1910, em 1914 e 1915 deviam ter recebido cerca de 2$000 o kilo no “toco”, conforme a gíria do seu tempo.

Essa rebaixa violenta nos preços da borracha teve reflexos violentos que alcançou tanto os exportadores, aviadores, como os seringalistas e seringueiros. Falava-se, na época, que o custo de produção, em 1914, se situava em 4$000 o kilo para os seringueiros, enquanto que os compradores ofereciam apenas 3$000 o kilo, conforme depoimento do deputado Luciano Pereira, em discurso na Câmara dos Deputados em 26/10/1914, refletindo as reivindicações e os lamentos das classes empresariais da Associação Comercial do Amazonas.

Como conseqüência dessa quebra de preços, resultante da perda do monopólio da borracha, com a entrada da produção dos seringais asiáticos, toda a estrutura produtiva da Amazônia começou a desabar. Os seringalistas endividados não conseguiam pagar, com os preços aviltados, os financiamentos dos aviadores e assim deixavam ao desamparo os seringueiros, que desprovidos dos ranchos e dos aviamentos do depósito e do barracão não tinham como e porque continuar produzindo. Muitos abandonaram as suas estradas e procuraram sobreviver em outras vilas e cidades rio-abaixo. Os que podiam voltavam ao Ceará e outros estados nordestinos. Muitos deles, no entanto, endividados e sem saldos, preferiram ficar nas suas colocações para se tornar caçador de peles de animais silvestres, coletor de ouriços de castanha ou simplesmente se dedicavam a agricultara de subsistência com os seus roçados de mandioca, milho, feijão e arroz. Os seringalistas também buscavam alternativas e estratégias de sobrevivência, tentando diminuir os custos de produção, através da produção de alimentos nos seringais, despendiam o pessoal localizado nos centros mais distantes, davam a conta daqueles seringueiros menos produtivos, diminuíam o número de burros e comboios, despendiam os funcionários do beiradão e do escritório. Outros, mais endividados, entregavam os seus seringais aos aviadores, em pagamento de suas dívidas ou deixavam que estes o executasse e arrematasse, ou adjudicassem as suas propriedades em hasta pública nos leilões judiciais.

Os aviadores, assim, se tornaram grandes proprietários de terras no interior. Um deles, B. Levy & Cia., conforme vimos, quando de sua dissolução em 1945 deixou um espólio de 309 seringais, e J. G. Araújo tornou-se praticamente dono de imensos latifúndios, propriedades de seringa e castanha no rio Negro, Solimões, Madeira, Purus e Juruá. Nunca foi feito um inventário de suas propriedades, pois a firma se extinguiu e de seus arquivos doados à Universidade do Amazonas não consta os originais nas cópias das escrituras e registros de imóveis dessas propriedades. Mas como o número de seus aviadores eram acima de 500 seringalistas é bem provável que o número de seringais recebidos em pagamento de suas dívidas tenham sido superiores a 1.000, pois segundo depoimento do seu último .................... Jaime de Araújo, a firma tinha uma sala cheia de cofres com escrituras e registros de seringais que ninguém sabia mais avaliar o seu número, nem o seu valor. Essas propriedades tinham virado pó nas mãos dos seringalistas e aviadores, pois o seu capital de financiamento havia sido convertido em terras sem preço e sem valor.

As companhias de navegação e os armadores particulares passaram a sofrer igualmente o déficit em suas linhas, diminuindo o número de saída dos seus vapores, suprimindo escalas, ou desativando e desarmando as suas gaiolas e chatas. Só a Amazon River, como vimos, declarava que no ano de 1913 havia sofrido um déficit operacional de 1.500:000$000, equivalente a 4.931.534 libras esterlinas em 1992, ou 7,4 milhões de dólares atuais, que desejava ser ressarcido do Governo Federal, que negou o seu pleito, pois as classes empresariais temiam o monopólio inglês de navegação fluvial, pois muitos dos armadores locais, sem subsídios, estavam com os seus vapores desativados por falta de movimento de cargas e passageiros.

As propriedades e imóveis em Manaus, construídos pelos portugueses, na época do boom, ficaram desvalorizados e muitas casas estavam desocupadas. O deputado Luciano Pereira informava na Câmara dos Deputados que das 8.000 casas existentes em Manaus, 2.000 estavam desalugadas, à espera de inquilinos que haviam abandonado a cidade, regressando para o Nordeste, ou se retirando para Portugal, França, Inglaterra e Alemanha. Fundou-se, inclusive, a Sociedade Repatriadora Lusitânia, com sede no Luso Sporting Club de Manaus, para promover a emigração de portugueses pobres e desamparados pela crise avassaladora. Muitos deles abandonaram as suas propriedades e foram residir em suas quintas e aldeias do Minho, Porto, Tras-os-montes, Pôvoa de Varzin, de onde provinham, deixando as suas firmas e casas nas mãos de procuradores, corretores e administradores de imóveis. Muitas dessas propriedades jamais foram vendidas e os aluguéis recebidos, muitas vezes, eram retidos por esses intermediários e jamais transferidos para os seus legítimos donos. Alguns portugueses que ficaram deixaram de mandar as pensões e mesadas para os seus familiares em Portugal que passavam necessidades. Muitos espanhóis aqui residentes e em Belém também abandonaram a região e voltaram para a Galícia, terra e província de suas origens. Judeus franceses de Alsácia e Lorena abandonaram os seus seringais e os seus estabelecimentos comerciais e regressaram à França, onde muitos foram se estabelecer em Paris ou em outras vilas e cidades franceses. Entre eles Marius & Levy que haviam construído um grande patrimônio em seringais como fornecedores de obras de arte e mosaicos para a construção do Teatro Amazonas, e como aviador-exportador e que com a riqueza acumulada havia construído o mais alto edifício comercial da cidade, de 4 andares, com estrutura de aço inglês e azulejo importado da França, situado na atual Rua Marechal Deodoro (antiga Rua do Imperador) com a Rua Teodureto Souto e Avenida Eduardo Ribeiro (atual edifício dos Correios e Telégrafos), não resistiu a crise e fechou o seu estabelecimento comercial, alugou os 4 pavimentos para a firma B. Levy & Cia, que havia resistido a crise, se mudou para Paris. Mais tarde, em 1914, aceitou uma oferta dos Correios e Telégrafos, feita pelo seu delegado Raul de Azevedo e com ajuda da Associação Comercial conseguiu vender esse suntuoso edifício para a referida repartição, que até hoje tem lá a sua sede. Os judeus marroquinos de origem portuguesa e espanhola, provindos de Tânger, Ceuta, Casablanca ficaram na Amazônia, pois tinham feito uma opção de mudança definitiva de viver na região. Para poderem sobreviver, durante a crise, também abandonaram os seringais, regatões, flutuantes e estabelecimentos do interior para se fixar de vez em Belém e Manaus.

A força da crise atingiu também as concessionárias inglesas do serviço público. A Amazon Telegraph Co. que operava o serviço do cabo telegráfico não conseguiu operar devido os altos custos e a queda do movimento de telegramas, pois as altas tarifas de 2$400 por palavra, vigente em 1913 (Loureiro 1986:130) equivaliam a 6 palavras por libra esterlina da época – ou o equivalente a cerca de 50 libras esterlinas, ou 75 dólares americanos de hoje, tornavam impossível o uso de seus serviços, que somente os altos preços da borracha dos tempos áureos tornavam inviável o seu funcionamento. Pior ainda era a situação das comunicações telegráficas do interior, pois segundo Loureiro (op.cit) um telegrama de Sena Madureira ou Empresa (atual Rio Branco-Acre) para chegar em Belém pagava a exorbitante quantia de 6$400 por palavra, quase meia libra esterlina, ou cerca de 31 dólares americanos de hoje. De Porto Velho para Manaus a palavra custava 2$000 e de Manaus a Belém 2$400, ou 12 dólares de hoje. A esses preços, a comunicação tornou-se inacessível, inviabilizando as operações do comércio, tanto da capital como do interior.

A Manaos Harbour que pertencia ao grupo do investidor inglês Alfred Booth, também proprietário da Booth Line e da Manaos Tramways (bondes e energia elétrica) também atravessava sérias dificuldades, solicitava aumentos de suas tarifas de capatazias e atracação e obteve do governo federal a concordância para a não conclusão das obras dos armazéns do retro-porto e a prorrogação do seu contrato por sessenta anos, numa tentativa de recuperar o capital investidor e fazer face aos serviços de manutenção e operação do sistema. A mesma situação se passava no porto de Belém, cuja concessionária a Port of Pará se encontrava em dificuldades e o seu proprietário Percival Farquhar, o maior investidor americano na Amazônia, pois era também o maior acionista da Amazon River e da Madeira-Mamoré Railway, insistia em obter compensação, subsídios e aumento de tarifas. Os seus investimentos não estavam dando o retorno esperado e os déficits se acumulavam na Amazon River que, em 1913, apresentou um déficit operacional de 7,4 milhões de dólares no valor atual.

A Madeira-Mamoré teve a sua construção iniciada em 1907 e concluída em 1912, a um custo de 81.675:731$612, equivalente a 5.445.048 libras da época e 269 milhões de libras esterlinas, ou 403 milhões de dólares de hoje, entrou em dificuldades pois a borracha boliviana que era o seu principal produto de frete diminuiu de volume e conseguiu escoar por uma outra linha férrea para o Oceano Pacífico. Percival Farquar, o seu construtor, recebeu do governo federal, como pagamento das obras, apenas 40.424:872$622 (vide Manoel Rodrigues Ferreira, A Ferrovia do Diabo, pg 305), ou 62.194:394$366, segundo Roberto Santos, 1980:238, ou seja, o equivalente a 3.093.478 libras da época, ou 104.497.7129 esterlinas de 1992, ou cerca de 156 milhões de dólares atuais. Se forem verdadeiros os números acima, Percival Farquar havia perdido cerca de 202 milhões de dólares na transação, o que é difícil de acreditar.
O abastecimento de água de Manaus e a construção do sistema de esgoto que era uma concessão do Governo do Estado à Companhia Inglesa, cujo capital inicial era de 400.000 libras depois aumentado para 800.000 libras esterlinas de 1906, ou 42,6 milhões de esterlinas, ou 64 milhões de dólares atuais, teve a sua estação de tratamento de esgoto situada na Rua Isabel (atual Teatro Chaminé) destruída por uma revolta popular. Segundo depoimento do Prof. Agnelo Bittencourt, 1925:309, esse motim foi causado pelo “corte da derivação d’água a todos as casas cujos inquilinos estivessem em atraso do seu pagamento à Manaos Improveroment e não satisfizessem os depósitos para garantia do consumo d’água”. Esse corte havia seria garantido por uma ordem do Governador Jonathas Pedrosa, que havia mandado uma tropa de cinqüenta praças da Polícia Militar para garantir a ordem. A versão dada por esse governador tinha mais conotação política, conforme se verifica pela sua mensagem de 10 de julho de 1913, transcrita por Agnello Bittencourt, 1925:308, como segue:
Os inimigos da paz e da ordem, cançados de ameaças constantes a este governo, abusando desta ampla tolerância, puzeram em prática suas sinistras urdiduras transformando o Quartel do Batalhão de Segurança em um reduto de sua politicagem mesquinha e excessiva perversidade. Estabelecem-se o pânico em toda a cidade ... e os sediosos sahiram à rua, e, guiados por baixos instrumentos da politicagem arruaceira, empastelaram-se órgãos de publicidade desta capital e dirigindo-se ao escriptorio da Manaos Improvments commeteram actos de verdadeira selvageria. Para minha garantia pessoal recolhi-me com toda minha família no Quartel General desta Região de onde solicitei do honrado Presidente da Republica que promptamente m’o prestou ...
A Manaos Markets and Slaughterhouse Ltd., concessionária inglesa do serviço do matadouro e do mercado público, em face dos precários serviços que a crise ocasionada com o quadro no consumo de carne verde e no abate de animais foi encampada, cuja indenização, fixada em 1913, pelo governo que concordou em pagar 3.000:000$000, a partir do segundo semestre de 1914. As duas indenizações da Manaos Market e da Manaos Improvments custariam, assim, ao governo estadual a vultuosa quantia de 10.500:000$000 (7.500$000 da Manaos Improvments e o saldo da Manaos Markets), importavam em 698 mil libras esterlinas de 1913, ou 34.523.080 libras de hoje, ou 51,7 milhões de dólares correntes). O Estado do Amazonas agia como se ainda estivesse nadando em ouro, quando de suas receitas públicas minguavam de forma desastrosa e incontrolável.
Vejamos o comportamento da receita pública do Governo do Estado do Amazonas durante a débâcle de 1911 a 1924 (Agnello Bittecourt 1925:230):



Receita pública do Estado do Amazonas – 1910-1924
Ano Valor em mil reis Valores em dólares corrigidos para 1992
1910 17.356:133$ 89.454.940
1911 12.901:477$ 66.043.927
1912 13.907:445$ 68.786.223
1913 9.373:699$ 46.226.676
1914 7.603:019$ 34.446.862
1915 7.459:333$ 22.973.649
1916 10.714:256$ 27.002.752
1917 11.015:754$ 24.226.143
1918 6.577:125$ 12.871.246
1919 8.010.222$ 16.177.222
1920 4.852.770$ 6.214.945
1921 4.401:962$ 5.004.099
1922 5.053:279$ 5.937.904
1923 6.363:268$ 5.998.057
1924 8.224:591$ 8.564.602

Pelo quadro acima, cujos valores foram mim atualizados para dólares de 1992, segundo a tabela do Great Britain Price Index e do Consumer Price Index dos Estados Unidos, a receita apenas do biênio 1910/1911 (155 milhões de dólares) foi superior a receita arrecadada em dez anos da crise, de 1915 a 1924, quando entraram nos cofres do Tesouro Estadual apenas 134,5 milhões de dólares. A depressão e a bancarrota haviam chegado desde 1914, quando a receita caiu para 34,4 milhões de dólares e 22,9 milhões em 1915, quase um quarto da arrecadação havida em 1910 (89,4 milhões de dólares).

Portanto, a crise que atingiu o comércio e os seringais de modo arrasador chegava também de fonte impetuosa ao setor público que viu as suas receitas minguarem de ano para ano, provocando o atraso de mais de seis meses no pagamento do funcionalismo público que viveu de vales e adiantamento da Tesouraria, ou dos agiotas que compravam os seus vencimentos com deságios de usura. Os fornecedores também não recebiam as suas contas e recusavam-se a vender ao governo. Somente, como ocorreram, nesses momentos de crise, os ....................... do poder conseguiam, em troca de favores nas eleições, ou de venda de voto, receber os seus salários ou empenhos.

Isto não ocorria somente no Estado. O Governo Federal, através da Alfândega de Manaus, sofreu violenta queda na sua arrecadação como veremos a seguir (Agnello Bittencourt, 1925).

Ano Mil reis Dólares corrigidos para 992
1910 15.197:307 78.328.371
1911 11.672:502 59.752.722
1912 9.846:381 48.698.671
1913 7.274.023 35.872.051
1914 4.037:328 18.291.841
1915 3.327:176 10.247.226
1916 4.249:780 10.710.574
1917 2.604:703 5.728.332
1918 1.413:927 2.767.020
1919 1.662:675 3.357.874
1920 1.615:348 2.068.770

Do mesmo modo que a arrecadação estadual, a receita da Alfândega de Manaus despencou de 78,3 milhões de dólares em 1910 para 2,0 milhões em 1920. De 1913 a 1920, a Alfândega de Manaus arrecadou somente 52,8 milhões de dólares, ou seja apenas 67% dos valores arrecadados num só ano de 1910.

No Pará, a situação era idêntica. A receita estadual caiu de 20.255:000$ em 1910 (104,4 milhões de dólares atuais) para 8.887:000$000 em 1915 (equivalente a 27,3 milhões de dólares atuais). A receita federal no Pará despencou de 41.876:000$000 de 1910 (215,8 milhões de dólares de 1992) para 13.834:000$000 de 1915 (42,6 milhões de dólares de 1992). Estas receitas tiveram com fonte Roberto Santos 1980:193, com base nas estatísticas de Le Cointe, Lauro Sodré e IBGE.

As fontes da receita pública federal e estadual na Amazônia haviam secado com a débâcle nas cotações da borracha. A produção e exportação da chamada goma elástica havia decrescida de 38.547 toneladas de 1910 para 35.165 ton em 1915, 23.587 ton em 1920, 14.138 ton em 1930, e haveria de bater no fundo do poço em 1932, quando foram produzidos e exportados apenas 6.224 toneladas. Neste ano negro de 1932, o valor exportado alcançou apenas 11 milhões de dólares/ano, comparados com os 1,9 bilhão de dólares atuais (de 1992), ou seja, em 1932, a Amazônia havia perdido 99,43% do seu produto interno em termos de borracha, em valores comparados de 1910 em 1932.

As falências na praça de Belém segundo cálculos de Le Cointe, 1922 (op.cit) se elevaram a 100 milhões de francos, ou 59.524:000$000, equivalente a 3.956.660 libras esterlinas de 1913, ou 195,6 milhões de esterlinas, ou 293 milhões de dólares a valores de 1992. As perdas do Banco do Brasil, segundo o deputado amazonense Luciano Pereira tinha sido de 35.000:000$000, ou 2.326.508 libras da época, equivalente a 115 milhões de libras esterlinas, ou 172 milhões de dólares a preços atuais. Somente na praça de Belém, nos informa R. Santos, 1980:239, havia um passivo ajuizado de 175.000.000$000, equivalente a 863 milhões de dólares a preços atuais.

Em Manaus, a situação não era diferente, embora fosse menos do que a praça de Belém, onde se concentrava a maioria das operações finais de vendas e exportação de borracha, pois a praça de Belém controlava os seringais e os aviamentos para o Acre, Alto Purus, Juruá e Javary. Mesmo assim a maioria das empresas estrangeiras tradicionais desapareceram nesse período de 1911 a 1920. Entre elas Marius & Levy, Theodore Levy Camille & Cia, Emmanuel Levy & Cia, Scholz & Cia. (que teve que entregar a sua residência o Palácio Rio Negro em pagamento de uma dívida para o Coronel Luis da Silva Gomes, do Seringal Ituxi do Rio Purus, que depois o vendeu para o Governo do Estado na administração do Governador Pedro Bacellar, em 1918, por 200:000$000, equivalente a 261 mil libras esterlinas, ou 391 mi dólares de valor corrente de 1992), Gordon & Cia, Adalbert Alden, S/A Armazens Andresen, De Lagotellerie & Cia, J. C. Araña y Hermano, Mello & Cia, Ahlers & Cia, R. Suarez & Cia e outros exportadores.

Também a crise teve efeitos devastadores entre os aviadores, pois com a inadimplência dos seringalistas, eles foram forçados a executar as suas dívidas, ficando com os seus seringais em seus passivos, que pouco ou nada valiam. Poucos deles sobraram. Entre os que sobreviveram a grande crise contavam-se nos dedos os nomes dos antigos aviadores exportadores e recebedores de borracha. J. G. Araújo & Cia que se extinguiu com o grande incêndio dos seus armazéns em 1989; B. Levy & Cia que se liquidou em 1943; J. A. Leite, cujos ativos foram vendidos para uma grande companhia de transporte de derivados de petróleo, que operava sob o nome de J. A. Leite (Navegação) Ltda. Os outros grandes aviadores e armadores do passado se extinguiram ou se liquidaram como J. S. Amorim, J. Rufino, Berringer & Cia, Ezagui Irmão & Cia Ltda, M. E. Serfaty & Cia, Semper & Cia, T. J. Dun, Higson & Cia, Benzaquem & Cia, C. F. Baunman e outros.

Daqueles heróicos tempos na lista dos jotas sobrou apenas J. Soares Ferragens Ltda. que, fundada em 1905 por José Antonio Soares e Ascendino de Barros, antigos empregados da Casa Canavarro, e que tiveram como sócios continuadores Aníbal Beça, Manoel Ribeiro, Prudêncio Venâncio, José Soares e Alfredo Soares, se mantêm até os dias de hoje no mesmo ramo de negócios, sob a direção deste último e de seus filhos, ultrapassando assim a terceira geração desde os seus fundadores. A mais tradicional e antigo estabelecimento comercial de Manaus é a Casa Canavarro, fundada em 1892, pelos comerciantes José de Souza Canavarro, Francisco Ventilari e Antonio Jorge Silva, antigo empregado que assumiu a gerência e se tornou sócio em 1910. Jorge Silva passou o co-mando para Prudêncio Venâncio e este por Norberto da Silva Venâncio e agora está sob a direção do seu bisneto José Rogério Barbosa Venâncio, sucessor da quarta geração de empresários.

As dívidas internas e externas dos Estados do Amazonas e Pará eram também consideráveis, tendo muito desses empréstimos como o da Societé Marseillaise feito em 1906 e consolidado em 1915 no valor de 20.500.000 francos, ou 14.965:000$000 com prorrogação de pagamento de contrato de 50 para 60 anos (Agnello Bittencourt, 1925:310). Esse funding de 14.900 contos representava hoje o equivalente 30,7 milhões de libras esterlinas, ou cerca de 46 milhões de dólares a preços de 1992. Isto em aditamento ao empréstimo original de 80 milhões de francos, ou 50.000:000$000, que à época de 1906 equivaliam a 3.339.790 libras, ou 177,8 milhões de libras, ou 266 milhões de dólares de 1992. Assim, o referido empréstimo da Societé Marseillaise equivaleria hoje a uma dívida de 312 milhões de dólares, que segundo o Prof. Agnello Bittencourt, 1925:303, foi uma “operação desastradíssima de lesa-patriotismo” e um “contrato leonino, imoral e escandaloso”, pois pagaram-se credores fictícios com a Amazon Steam Navigation Co, que recebeu 4.597 contos e até o Banco Amazonense, o famoso Banco do Tostão – que recebeu 3.700 contos. O povo assim o cognominou porque recebia um imposto de cem réis por kilo de borracha e de oitenta réis por kilo de caucho, para a formação do seu capital, com a obrigação de prestar auxílio financeiro, o empréstimo à indústria extrativa da borracha.

Os empréstimos internos e externos feitos na sua maioria nos tempos de bonança agora, nos tempos da débâcle pesavam exageradamente no orçamento público dos Estados do Pará e Amazonas, conforme se vê no quadro abaixo:


Dívida interna e externa em mil réis


Amazonas - 1912
Pará - 1915

Dívida Interna
18.072:857$
28.159:776$

Dívida 992
1910 15.197:307 78.328.371
1911 11.672:502 59.752.722
1912 xterna
48.417:159$
37.621:507$

Total
66. 490:016$
65.781:283$

Fonte: Roberto Santos, 1980:240/241

O total da dívida do Amazonas, em dólares de 1992, correspondia a 328,8 milhões de dólares, um pouco maior que a do vizinho estado paraense. Portanto, na altura da crise, por volta de 1915, a Amazônia tinha um acordo flutuante ou consolidado, interno e externo da ordem de 650 milhões de dólares em valores correntes de 1992, excluídas as dívidas dos municípios.

Com a queda na arrecadação, o peso da dívida, a falência das empresas, o Pará e o Amazonas passaram a viver dentro de uma completa desordem financeira e sem recursos para enfrentar o caos da bancarrota e do colapso econômico, político e social. O Prof. Agnello Bittencourt, testemunha viva da época, informa no seu livro Chorografia do Amazonas, pg.310, que o funcionalismo público passou meses sem receber as suas remunerações; o Gymnasio Amazonense foi fechado por mais de oito meses por indisciplina; foram extintas mais de cem escolas públicas primárias.

O caos chegou, assim, ao Amazonas como ao Estado do Pará. A economia extrativa da borracha havia desabado e toda a estrutura e cadeia produtiva entrava em colapso. Começava, assim, os dias da ira e os tempos das vacas magras. Só que não seriam somente os sete anos do sonho do Faraó interpretado por José. Seriam sete vezes sete os tempos das vacas macilentas, das espigas delgadas e da penúria açoitados pelo vento oriental, conforme está escrito na profecia bíblica do Gênesis, capítulo 41, versículo 16 a 54.
Cumpria-se, assim, a profecia de José: “E houve fome em todas as terras (da Amazônia)”. Gênesis, capítulo XLI, versículo 54. Substituía-se apenas o final do versículo: “e em toda a Terra do Egito havia pão” por: em todos os países do sudeste asiático multiplicavam-se os seringais e o látex do Oriente passou a dominar os mercados do mundo.